Em 1999 fui convidado pela Igreja Presbiteriana do Guará-DF, para proferir as palestras do 1º Simpósio sobre Diaconato. Foi uma experiência muito rica, para mim, estudar este assunto, pois este ofício é muito mal compreendido nas igrejas. Costuma-se ouvir que diácono é uma espécie de zelador da igreja, e neste caso, menosprezam sua importância no corpo de Cristo. Mas há os que supervalorizam, colocando os diáconos na mesma categoria de ofício dos presbíteros/pastores/bispos (termos sinônimos no grego do Novo Testamento). Por causa destes extremos e a necessidade de pontuarmos com clareza a função do ofício diaconal, para o bom andamento do serviço do reino de Deus, decidi postar, por etapas, a palestra que proferi sobre A Origem do Ministério Diaconal. Boa leitura. Pr. Airton Williams
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Quando fui convidado para proferir estas palestras fui surpreendido ao ver entre os tópicos a serem discutidos o da instituição do diaconato. Surpreendido porque desde há muito tempo, na verdade séculos, que esta questão é um ponto pacífico na vida da Igreja.
Por outro lado, fiquei extremamente feliz, pois posso agora rediscutir o assunto tentando propor uma perspectiva diferente na discussão (não que eu seja original, apenas sigo outros exegetas que discordam da leitura tradicional que se tem dado ao assunto). Na verdade acredito que durante todo este tempo cometemos um grande equívoco sobre esta questão. E este equívoco não é daquele tipo indiferente. É minha convicção pessoal que nada tem sido mais prejudicial ao exercício do diaconato do que as bases de sua origem. Prejudicial porque tem limitado ao extremo a ação deste ministério tão importante na vida da Igreja.
Atos dos Apóstolos 6.1-7: um erro de leitura
Provavelmente, desde o século IV, quando do concílio de Neo-Cesaréia (314-325), que o ofício diaconal foi associado à escolha dos sete em At 6. Por ocasião daquela reunião ficou estabelecido que o número de diáconos de uma igreja não poderia exceder a sete, numa relação direta com o texto de Lucas.
A partir de então esta posição passou a fazer parte da tradição da Igreja, sendo aceita até aos dias de hoje sem muito questionamento.
Mesmo no período da Reforma Protestante pouca atenção se deu a isto. Na verdade, os reformadores respaldaram este conceito de origem. Prova disto são as palavras de João Calvino:
Ainda que o nome de diácono tenha um sentido mais amplo, não obstante a Escritura chama especialmente diáconos aqueles que são constituídos pela igreja para distribuir as esmolas e cuidar dos pobres, como seus procuradores. A origem, a instituição e o cargo dos diáconos lhes refere são Lucas nos Atos dos Apóstolos (At 6,3). A causa foi as queixas dos gregos contra os hebreus, porque não eram levadas em conta as viúvas no serviço dos pobres. Os apóstolos, alegando não poderem cumprir por vez com dois ofícios, pedem ao povo que eleja sete homens de boa vida, para que se encarreguem disto.
Eis aqui a missão dos diáconos no tempo dos apóstolos, e como devemos ter-lhes conforme o exemplo da Igreja primitiva (Calvino, João. Institución de la religión cristiana. Vol II, livro 4, capítulo III. Países Baixos: Feliré, 1981. p.843).
Estas palavras de Calvino alimentaram, e continuam alimentando, três grandes equívocos quanto ao ofício diaconal:
primeiro, que a função dos diáconos é somente a de assistir aos pobres em suas necessidades. É verdade que nas linhas anteriores Calvino distingue duas classes de diáconos, a que se presta à administração dos bens destinados aos pobres e a que assiste aos enfermos e demais necessitados. Porém, como se pode observar, a atuação dos diáconos continua limitada aos fins caritativos;
segundo, que Atos 6,3 valida tanto a origem como a instituição e o cargo diaconal, servindo de base, então, para as limitações anteriores;
terceiro, que a missão dos diáconos era entendida assim na Igreja primitiva, sendo, portanto, a base normativa de nossa compreensão.
Talvez você esteja se perguntando, mais por que estas três afirmações são um equívoco? A resposta é simples: porque Atos 6,3 não fala nem ensina nenhuma destas coisas. Na verdade, durante todo este tempo se fez uma leitura errada da razão de ser deste texto lucano. Provavelmente nosso questionamento neste momento seja: mais aonde falhou a leitura?
Acredito que o primeiro problema que ocasionou esta má compreensão texto tenha sido a imposição da nossa ótica sócio-eclesiástica sobre o texto. Este problema tem sido patente de nossa leitura bíblica desde há muito tempo. Nós temos a tendência de lermos a Bíblia a partir de nossa compreensão e conceitos preestabelecidos não permitindo que a mensagem original das Sagradas Escrituras chegue até nós com o mesmo frescor com o qual chegou aos seus leitores originais. Assim sendo, é costume entre nós desrespeitarmos, ou mesmo ignorarmos, os contextos que se impõem no texto tais como cultura, sociologia, eclesiologia e tantos outros que diferem dos nossos. Precisamos entender com urgência que a Bíblia não foi escrita hoje, apesar de sua mensagem permanecer para todo o sempre.
Foi exatamente por causa disto que a origem do diaconato se perdeu dentro da Bíblia sendo estigmatizado como tal um texto isolado de seu Sitz im Leben (ou seja, a situação vivencial motivadora do texto). Como veremos mais a frente, a situação pela qual passava a Igreja de Jerusalém nada tem a ver com o que hoje chamamos de diaconato. No entanto, quando a tradição da Igreja estabeleceu sua estrutura, a definiu, ela esqueceu que seu universo eclesiástico era muito mais amplo do que o universo da Igreja primitiva. Assim, ao invés de ler o texto bíblico a partir do seu ambiente eclesiástico nossa herança reformada impôs a este a sua visão e prática.
Não estou dizendo com isto que os nossos reformadores deturparam o sentido do texto, não. Estou dizendo que eles não tiveram o cuidado, ao lerem o texto, de distinguir entre o seu universo sócio-eclesiástico e o do texto sagrado.
O segundo problema perceptível na leitura de Atos 6 que a nossa tradição enfrentou foi o de possuir um campo semântico muito limitado. Buscando uma base bíblica para respaldar a origem do diaconato os Pais da Igreja, os Reformadores e todos os seus sucessores caíram no erro comum de achar que a presença de uma palavra no texto pudesse garantir a fidelidade das suas interpretações.
Assim foi que, ao lerem o texto de Atos 6 descobriram que ali se falava da eleição de um grupo para servir as mesas. O verbo que aí aparece é DIAKONEO Com isso, logo se pensou estar diante da origem do ofício diaconal.
O problema todo é que o texto não usa um substantivo (o que caracterizaria as pessoas que exercessem a função designada), mas um verbo (que expressa uma ação a ser feita). Em outras palavras, o texto não fala de diáconos, mas de homens que foram escolhidos para suprir um problema que havia surgido na comunidade de Jerusalém.
Outro fator dentro disto que estamos demonstrando é que o uso das palavras diakoneo e diakonia já havia sido feito nos evangelhos, inclusive por Lucas, para designar outras atividades dos discípulos de Jesus (Lc 8.3; 10.40; Mc 1.31; 10.43-45, etc.), e nem por isso temos a apresentação nestes textos de qualquer instituição diaconal.
Pode-se alegar, ainda, que a eleição comunitária e a imposição de mãos encontrada no texto de Atos 6 deixam claro a instituição dos diáconos. Na verdade o que temos aqui são conjecturas muito mal fundamentadas. E isto por duas razões, que me parecem óbvias:
Primeira, a eleição dentro de uma comunidade não significa necessariamente a designação de um ofício, mas de uma função. E esta pode ser permanente ou temporária. O que o texto de Atos 6 deixa claro é que se trata de um problema circunstancial, portanto, temporário, o que descaracterizaria o aspecto de um oficialato; além disso, uma eleição serve para nos demonstrar, também, o caráter representativo de uma comunidade;
segunda, a imposição de mãos não estabelece a origem de um ofício; na verdade, ela apenas representa, ou simboliza, a delegação de autoridade, ou poder, para o exercício de uma determinada atividade; e isto pode ser visto claramente no texto de Lucas em Atos 13.3. Temos aqui a separação de Barnabé e Paulo para a obra missionária; observe que o procedimento da Igreja de Antioquia é o mesmo da Igreja de Jerusalém, inclusive valendo-se da mesma fórmula de designação de autoridade para o exercício da função. Compare os textos de At 6.6 e 13.3:
Atos 6.6:
E os apresentaram ante os apóstolos, e este, orando, lhes impuseram as mãos.
Atos 13.3:
Então, jejuando e orando, e pondo sobre eles as mãos, os despediram
Nos dois textos, a oração e a imposição de mãos se faz presente. O único elemento novo existente é o jejum em At 13.3. No entanto, não podemos dizer que Barnabé e Paulo estavam recebendo ali um novo ofício. O que demonstra que a imposição de mãos está irremediavelmente ligada à delegação de autoridade para a execução de uma obra. E como já dissemos, esta pode ser permanente ou temporária.
Atos 6.1-7: enfocando o problema
Se Atos 6 não fala da instituição dos diáconos do que fala então? Devemos lembrar que Atos 1-7 forma um bloco literário onde Lucas nos apresenta o estabelecimento da Igreja em Jerusalém e a crescente oposição que esta vinha sofrendo (1-5) e a expansão desta, inclusive, entre os judeus de fala grega (1-7).
E é nesta expansão que Lucas nos conta o segundo problema interno enfrentado pela comunidade de Jerusalém (o primeiro problema foi narrado em At 5.1-11: Ananias e Safira). O evangelho cresceu demais e os judeus helenistas também foram alcançados. Porém, não havia uma boa relação entre os judeus palestinenses e os judeus helenistas por questões de pureza. E este mesmo problema continuou existindo na comunidade cristã.
Em Jerusalém esta crise ficou patente quando propositadamente as viúvas helênicas foram desprezadas na distribuição dos alimentos. Em outras palavras, os judeus palestinenses privilegiaram suas viúvas, praticando uma espécie acepção de pessoas.
Lucas procura nos mostrar que crescimento traz alguns problemas de ordem estruturais e que a Igreja deve estar atenta a fim solucioná-los a fim de que continue a crescer. Assim, os apóstolos sugerem a eleição de sete homens que fossem encarregados de reparar este problema e exercessem uma justa distribuição dos alimentos.
Assim sendo, I. Howard Marshall lembra-nos que
Embora o verbo “servir” provenha da mesma raiz do subs. que em português se traduz por “diácono” , é digno de nota que Lucas não se refira aos Sete como sendo diáconos; a tarefa deles não tinha nome formal (Atos: introdução e comentário. São Paulo (SP): Vida Nova, 1988. p.123).
A fim de concluirmos este breve comentário sobre o Sitz im Leben do texto lucano convém observarmos três dados interessantes:
1. Os Sete deveriam possuir qualificações espirituais, o que nos ensina a necessidade de espiritualidade em tudo que fizermos, mesmo naquilo que nos parece ser insignificante;
2. Os Sete foram escolhidos entre aqueles que padeciam da discriminação, o que nos ensina a necessidade de sermos íntimos da aflição do povo de Deus;
3. O número sete deve ter sido concebido da praxe judaica de nomear juntas de sete homens para deveres específicos , o que simbolizava a perfeição, o que nos ensina a necessidade da eficiência em tudo quanto fizermos.
Diante de tudo o que foi exposto é importante ressaltar duas questões a fim de passarmos à discussão da origem do ofício diaconal:
Acredito que Atos 6.1-7 não fala da instituição diaconal, mas de como a Igreja de Jerusalém lidou com um problema interno de discriminação;
Isto não significa que o movimento diaconal não possua base bíblica quanto a sua origem, antes pelo contrário, possui bastante, mas como ficamos bitolados a um único texto deixamos de ver a beleza de sua origem e sua conseqüente importância para a Igreja do Senhor Jesus Cristo.
Tendo estabelecido que há um erro de interpretação quanto à origem do diaconato, segundo o Novo Testamento, precisamos olhar para origem e fundamento, de fato, deste ofício (na próxima postagem).
Um comentário:
Prezado Irmão, bom dia!
Fico muito feliz em saber que existem pessoas que tem a mesma convicção que eu tenho a respeito desse assunto. Parabéns e que Deus continue segundo a sua vontade iluminando sua vida.
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